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25.2.19

Tragédia em Brumadinho: um mês depois, famílias de desaparecidos enfrentam 'limbo jurídico' e 'desespero de viver o luto sem o corpo'

A estudante Geovanna Oliveira, de 22 anos, fica ansiosa sempre que um número desconhecido liga para o seu celular. Pode ser o Instituto Médico Legal, com notícias de que encontraram o corpo de seu pai.
Um mês após a ruptura da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais, ela está perdendo as esperanças de poder enterrá-lo. Seu pai, o eletricista Aroldo Ferreira de Oliveira, 54 anos, estava em um contêiner localizado em uma das partes mais baixas da Mina Córrego do Feijão quando a estrutura desabou.
"Ele estava em uma área mais funda do terreno. Acho que só vão encontrá-lo se ficarem o tempo que for preciso para achar todo mundo", acredita Geovanna.
Como ela, mais de 100 famílias seguem na expectativa de que as buscas dos bombeiros em Brumadinho revelem os corpos de seus entes queridos, usando máquinas pesadas para cavar cada vez mais fundo no mar de lama que irrompeu da barragem da Vale, no dia 25 de janeiro.
Integrante das equipes de resgate às vítimas da tragédia em BrumadinhoDireito de imagemADRIANO MACHADO/REUTERS
Image captionSegundo a Defesa Civil de Minas Gerais, mortes em Brumadinho já somam 179
De acordo com o boletim mais recente da Defesa Civil, 131 pessoas ainda não foram localizadas, enquanto 179 mortes foram confirmadas. Somando as ocorrências, são 310 as vítimas da barragem rompida em Brumadinho.
Além de prolongar a angústia dos familiares, os casos das vítimas ainda desaparecidas geram uma série de incertezas e dificuldades de ordem prática para as famílias.
Sem a certidão de óbito, procedimentos ligados a sucessão, previdência, rescisão do contrato de trabalho e acesso a seguro de vida ficam travados, deixando as famílias presas a um limbo jurídico sem previsão de saída.
"Sem a certidão de óbito, as famílias não podem buscar os seus direitos", diz à BBC News Brasil o defensor público Rômulo Luis Veloso de Carvalho, que vem atendendo parentes das vítimas em Brumadinho.
Geovanna Oliveira com o pai, Aroldo Ferreira de Oliveira, morto em tragédia em BrumadinhoDireito de imagemARQUIVO PESSOAL/GEOVANNA OLIVEIRA
Image captionGeovanna Oliveira com o pai, Aroldo Ferreira de Oliveira, que estava para se aposentar na Vale

Morte presumida

Carvalho explica que a saída legal no caso de vítimas que não forem encontradas será solicitar na Justiça a declaração da morte presumida, prevista no artigo 7º do Código Civil para casos de morte "extremamente provável".
A promotora Claudia Spranger lembra que este foi o caminho para o reconhecimento das mortes do voo 447, da Air France. O Airbus caiu no Oceano Atlântico em 2009, com 228 pessoas a bordo. A maioria não foi encontrada.
A lei especifica que a morte presumida só pode ser declarada depois que as buscas pelas vítimas tenham sido encerradas. "Assim, só é possível pensar nessa ação quando o Corpo de Bombeiros der por esgotada a busca e averiguação em Brumadinho", considera Spranger, membro da força-tarefa do Ministério Público de Minas Gerais na cidade.
Geovanna Oliveira com o pai, Aroldo Ferreira de Oliveira, morto em tragédia em BrumadinhoDireito de imagemARQUIVO PESSOAL/GEOVANNA OLIVEIRA
Image captionGeovanna Oliveira com o pai, Aroldo Ferreira de Oliveira, no Rio de Janeiro
A partir desta semana, entretanto, as equipes da Defensoria Pública na cidade estarão disponíveis para fazer os primeiros pedidos individuais pela declaração de morte presumida, diz Carvalho.
O defensor público afirma que há interpretações divergentes da lei, e considera que o fato de as buscas ainda estarem em andamento não deve impor um obstáculo nestes casos, já que as circunstâncias da tragédia são amplamente conhecidas e a lei não ignora os fatos.
"Sabemos que as buscas, agora, são por corpos. São para que se possa enterrar as pessoas", pondera. "O tempo desses processos vai depender do Judiciário. Mas estamos em diálogo para que seja feito o mais rápido possível, e os juízes estão bastante sensíveis a esses casos", afirma o defensor público.

Sem acesso a contas e pensão do pai

Geovanna é a caçula dos dois filhos de Aroldo, e dependia do pai para se sustentar durante a faculdade. Ela estuda Nutrição na Universidade Federal de Ouro Preto, e mora com outras sete jovens.
"Eu estou vivendo por conta da doação da Vale", afirma, referindo-se aos R$ 100 mil doados pela empresa aos familiares das vítimas. "Porque as outras coisas, eu não consegui ter acesso a nada. Eu tinha as senhas bancárias do meu pai, mas os cartões estavam com ele na hora do acidente", diz.
Geovanna conseguiu confirmar que o salário do pai continua entrando na conta, mas a família não consegue acessá-lo. Além disso, foi informada que só poderá solicitar a pensão a que tem direito pela previdência privada do pai quando tiver a certidão de óbito. Diz ter ligado na central de assistência da Vale para buscar esclarecimento e foi orientada a ir para os postos de atendimento em Brumadinho - mas está em Ouro Preto por causa da universidade e do estágio.
"A minha vida 'acabou', entre aspas, mas eu não posso parar a minha vida. Não posso ficar direto em Brumadinho para correr atrás de informações", lamenta.
A jovem chegou a conversar com a Defensoria Pública, mas recebeu a orientação de que não valia a pena entrar com um pedido de declaração de morte presumida por enquanto, já que as buscas dos bombeiros continuam.
"Parece que não compensa por enquanto", diz Geovanna. "Mas não sei por que as autoridades não adiantam isso. Porque eles sabem que as pessoas estão mortas."
Aroldo, seu pai, era o terceiro de oito irmãos, e trabalhava na Mina Córrego do Feijão há 33 anos. Estava para se aposentar no ano que vem.
"Ele não merecia morrer desse jeito", diz sua irmã, Neide Ferreira de Oliveira, de 50 anos. "Ele era um filho muito bom, um irmão excelente, um pai exemplar. Era muito presente. É uma perda que não tem nem palavras para explicar."
Ela diz que sua mãe, de 75 anos, está desolada. "Ela está sofrendo muito. Ela queria encontrar o corpo do meu irmão para enterrar. Fica um vazio por não poder enterrar os restos mortais", diz Neide.

Temor de fim das buscas

Os pedidos de declaração da morte presumida esbarram em um equilíbrio delicado entre as necessidades mais prementes de algumas famílias e a expectativa em torno do processo de buscas pelos corpos - o que envolve o medo de que sejam interrompidas antes que todos sejam encontrados.
De acordo com o defensor Rômulo Luis Veloso de Carvalho, a Defensoria Pública chegou a estudar entrar com uma ação coletiva pela declaração de morte presumida. Mas optou-se por pedidos individuais, de forma a ajudar as famílias que estejam passando necessidade, mas sem melindrar as outras.
Rastro de destruição causado pela tragédia em BrumadinhoDireito de imagemGETTY IMAGES
Image captionBuscas por desaparecidos não têm prazo para acabar, dizem bombeiros
"Muita gente está precisando dessa documentação para seguir a vida", explica o defensor público. "Outras entendem que, se a morte presumida for declarada, ninguém mais vai procurar os seus", resume.
De acordo com o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, o trabalho de buscas em Brumadinho por enquanto não tem prazo para acabar.
"Como a área já foi varrida extensivamente várias vezes, agora as buscas estão concentradas nos locais onde se acredita que havia concentração maior de pessoas, como o restaurante, o almoxarifado", afirma o Tenente Herman Ameno, um dos porta-vozes do Corpo de Bombeiros.
"Agora estamos utilizando um maquinário pesado para poder fazer escavação e alcançar locais que estão bastante soterrados, alguns chegando a 20 metros de terra. As máquinas retiram o material, revolvem, os cães farejadores verificam se naquele lote de terra há sinais de vítimas. É bem minucioso e demorado", diz. "Os rejeitos afetaram uma área com um número muito grande de pessoas, não há como prever até quando as buscas vão continuar."

Desaparecidos, mas com contratos de trabalho vigentes

Aroldo e todos os demais trabalhadores da Vale e de empresas terceirizadas que continuam desaparecidos seguem tendo seus salários regularmente. O Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais (MPT-MG) entrou com uma ação judicial exigindo a continuidade do pagamento salarial às vítimas não localizadas logo após o acidente, e obteve uma liminar favorável neste sentido.
O objetivo, segundo a procuradora do trabalho Luciana Coutinho, era buscar "evitar essa celeuma, esse verdadeiro limbo", gerado pela situação de desaparecimento.
Ela explica que, quando o óbito de um trabalhador é confirmado, cessa o vínculo empregatício e, a partir daí, a empresa tem a obrigação de pagar todas as verbas oriundas da rescisão e as indenizações pertinentes.
No caso dos desaparecidos, porém, não se sabe quanto tempo levará até que esta rescisão se concretize. Paira uma indefinição prolongada, que depende de o corpo ser encontrado ou de a morte presumida ser declarada.
"O contrato de trabalho está em aberto, é como se continuasse em vigor. As verbas rescisórias, o seguro de vida e uma série de obrigações trabalhistas ficam em stand-by,aguardando a solução dessa questão", afirma Coutinho, do MPT-MG.
"Criamos essa alternativa para que as famílias não ficassem sem esse amparo emergencial mínimo. É uma situação sem precedentes ter tantos trabalhadores nessa situação de desaparecidos", diz a procuradora.
De acordo com a Vale, os salários dos funcionários não localizados continuarão sendo pagos até que eles tenham o óbito confirmado pelas autoridades competentes. A empresa afirma que 260 famílias já receberam a doação de R$ 100 mil oferecida como ajuda emergencial após a ruptura da barragem.
Na semana passada, a empresa assinou um acordo preliminar fixando valores para a antecipação de indenizações a moradores de Brumadinho, por meio do pagamento mensal de um salário mínimo por adulto, meio salário mínimo por adolescente e ¼ por criança, pelo prazo de um ano. O acordo foi firmado com as instâncias federais e estaduais da Defensoria Pública, do Ministério Público e da Advocacia Geral.
Andresa Rodrigues e o filho Bruno Rocha Rodrigues, de 26 anosDireito de imagemFACEBOOK/ANDRESA RODRIGUES
Image captionAndresa diz esperar poder enterrar seu filho, Bruno, que havia sido efetivado na Vale, onde entrara como estagiário

'Viver o luto sem o corpo mata a gente'

O medo de que o Corpo de Bombeiros interrompa as buscas antes de encontrar todas as vítimas gera calafrios em muitos familiares.
Andresa Oliveira diz que tem passado "as horas, minutos e segundos" parada no dia 25 de janeiro, e espera de que "no mínimo" possa ter o alento de enterrar o seu filho, Bruno Rocha Rodrigues, de 26 anos.
"Eu aguardo esse momento para fechar o ciclo", diz Andresa, que é professora, pedagoga e vereadora pelo município de Mário Campos, a meia hora de Brumadinho.
"Viver esse luto sem o corpo, isso mata a gente", afirma. "É desesperador. E eu e centenas de famílias estamos vivenciando isso."
Bruno se formou em engenharia de produção em março do ano passado e foi efetivado na Vale, onde entrara como estagiário, realizando um sonho, segundo a mãe. Ela calcula que o filho estivesse no refeitório ou na área administrativa da mina quando a barragem rompeu. Ambas as áreas foram varridas pela lama.
Andresa se ressente da palavra que vem sendo usada para descrever o paradeiro do filho: "Eu não considero ele desaparecido. Para mim, desaparecido é algo que você não sabe onde procurar. Todos nós sabemos onde eles estão", afirma, referindo-se ao caminho da lama, que deixou 270 hectares de devastação.
"Se fosse ouro que estivesse lá embaixo, você acha que eles não teriam encontrado?", cobra Andresa. "A Vale desmonta montanhas, cava crateras para encontrar a coisa que acha preciosa, que é o minério. O meu filho é a minha pedra preciosa. Eu quero que encontrem mecanismos para achar ele também."
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