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20.12.18

João de Deus: Como trabalha a força-tarefa que investiga denúncias de abuso sexual contra médium

"Esse é, sem dúvida, o maior caso que eu já vi de abuso sexual, não só no Brasil, mas no mundo". A frase da promotora Gabriela Manssur, do Ministério Público de São Paulo, resume a sensação de grande parte da equipe de investigação que está trabalhando com a enxurrada de denúncias de abusos sexuais contra João Teixeira de Faria, o médium João de Deus. Preso desde domingo, ele nega as acusações.
A investigação está concentrada no Ministério Público e na Polícia Civil de Goiás, em Goiânia, a 90 quilômetros de Abadiânia, cidade onde João de Deus criou a Casa de Dom Inácio de Loyola, em 1976. Era ali que o médium fazia seus atendimentos espirituais - e também onde teriam ocorrido os abusos, em uma sala privada. Mas, como há vítimas espalhadas pelo Brasil, órgãos de outros Estados estão colaborando, como o MP de São Paulo.
"O número de casos é de fato surpreendente, de proporções inesperadas, de forma que não seria possível a atuação individual sozinha", disse à BBC News Brasil a promotora de Abadiânia, Cristiane Marques de Sousa, responsável pelo caso.
Em apenas dois dias, entre 10 e 11 de dezembro, 206 mulheres de 14 Estados e outros 6 países entraram em contato com o Ministério Público de Goiás para relatar episódios de abusos, distribuídos entre a década de 1980 e outubro deste ano.
Desde então, as mensagens começaram a se avolumar e já superam o número de 500, mas não se sabe quantas são de pessoas que dizem ser vítimas. Um novo balanço está sendo feito e deve aumentar o número de possíveis vítimas.
Para lidar com esse volume de relatos, tanto o Ministério Público como a Polícia Civil de Goiás criaram forças-tarefas, coordenadas entre si. Em Goiás, há sete promotores e sete delegados trabalhando no caso. Em São Paulo, Estado de origem de grande parte das denunciantes, também foi criado um grupo de apoio à força-tarefa goiana no Ministério Público, com três promotoras - entre elas, Gabriela Manssur.
Promotores Luciano Miranda Meireles e Patricia Otoni Pereira, da força-tarefa do Ministério Público de Goiás que apura as denúncias de abuso sexual contra o médium João de DeusDireito de imagemJOÃO SÉRGIO/ASCOM MPGO
Image captionPromotores Luciano Miranda Meireles e Patricia Otoni Pereira, da força-tarefa do Ministério Público de Goiás que apura as denúncias de abuso sexual contra o médium João de Deus

Envio de relatos e coleta de depoimentos

A investigação começa com o recebimento de relatos de possíveis vítimas por e-mails, telefonemas e outros canais de contato dos órgãos de investigação. O principal deles é o e-mail do Ministério Público de Goiás, disponibilizado após a denúncia do caso no programa de Pedro Bial, da TV Globo.
"Nossa preocupação foi criar um canal para dar voz a essas mulheres. E, no segundo momento, acolher essas mulheres, orientá-las, caso queiram fazer a denúncia formal. É muito importante que as vítimas compareçam", diz a promotora Patrícia Otoni, que integra a força-tarefa em Goiás.
Logo no primeiro dia, o órgão recebeu 40 mensagens de mulheres que se apresentavam como vítimas de João de Deus. No dia seguinte pela manhã, o número de relatos já havia saltado para 78. Ao fim do dia, o volume tinha chegado a impressionantes 206 mulheres. A partir daí, o Ministério Público deixou de contar quantas das novas mensagens eram de possíveis vítimas.
O passo seguinte é fazer contato com as mulheres que enviaram relatos de abusos, para verificar se gostariam de agendar um depoimento nos seus Estados de origem e fazer uma denúncia formal. Em Goiás, já foram ouvidas mais de 20 mulheres, no Ministério Público ou na Polícia Civil. Em São Paulo, foram mais de 30 - todo o material foi encaminhado para Goiás. Também foram ouvidas mulheres no exterior, por vídeoconferência.
"Não necessariamente serão processados todos os casos, vai depender da narrativa. É um trabalho que temos feito de maneira individualizada, de forma muito séria e muito técnica", afirma Otoni.
A promotora Manssur foi uma das que colheram depoimentos em São Paulo, em apoio à força-tarefa de Goiás. Ela conta que chegou a ser procurada até no Facebook e no Instagram por mulheres que queriam fazer denúncias contra João de Deus.
"As denúncias são muito graves. É repugnante o uso da fé e da esperança de cura de doença para satisfação de desejo sexual, contra a vontade das vítimas, manipulando essas mulheres e impedindo a resistência. Eu nunca tinha visto nada igual, em termos do quanto vem de denúncia e do quanto chega de pedido de ajuda. Sem dúvida, é o maior caso de abuso sexual que eu já vi e provavelmente vá ver em toda a minha carreira", relata a promotora Manssur.
João de Deus se apresenta para a polícia no último domingo, 16 de dezembroDireito de imagemREUTERS
Image captionJoão de Deus se entregou à polícia no domingo, 16 de dezembro

Investigação continua após os depoimentos

Após os depoimentos, são tomadas outras medidas para verificar a validade do que foi relatado pelas vítimas. Por exemplo, diligências no local onde teriam ocorrido os crimes, para analisar se as descrições conferem ou se há alguma contradição.
"Não é apenas a palavra de um contra a palavra de outro. Nesse tipo de crime, cometido na clandestinidade e quase sempre sem testemunha, tem que analisar as circunstâncias apresentadas pelas vítimas, contrapostas àquilo que é apresentado pelo denunciado", explica o promotor Luiz Henrique Dal Poz, do Ministério Público de São Paulo, que denunciou o médico Roger Abdelmassih, condenado pelos estupros de 37 mulheres, em 2010.
No caso de Abdelmassih, os relatos das diferentes vítimas eram semelhantes nos detalhes: elas descreviam o mesmo olhar do médico, o mesmo hálito, a mesma forma como ele se impunha. Também no caso de João de Deus, relatos parecidos feitos por um grande número de vítimas também devem corroborar as acusações e dar mais força ao processo.
"Também devem ser ouvidos funcionários do local, não só na condição de testemunhas, mas também de coautores, caso tenham sido coniventes", explica João Paulo Martinelli, advogado criminalista e doutor em direito penal pela USP. "Já outros tipos de prova são mais difíceis, não tem como fazer exame de delito muito tempo depois, por exemplo", diz Martinelli.

Polícia Civil e Ministério Público focam em casos diferentes

A estratégia de trabalho das forças-tarefas da Polícia Civil e do Ministério Público de Goiás está sendo diferente.
Segundo o delegado-geral da Polícia Civil de Goiás, André Fernandes, o órgão está concentrado em investigar casos mais recentes, ocorridos nos últimos seis meses. A interpretação é que esses casos têm mais chances de ser acolhidos pela Justiça, devido a uma regra chamada de prazo de decadência - segundo a qual a vítima de um crime sexual tinha apenas seis meses para pedir que a Justiça a representasse em uma ação civil pública. A regra deixou de existir em setembro.
A prioridade da Polícia Civil, então, é concluir ainda nesta semana a investigação de um caso de abuso sexual que teria ocorrido na Casa de Dom Inácio de Loyola em outubro - dentro desse limite de seis meses. "Estamos na fase de realizar outras diligências, com objetivo de fortalecer ainda mais as provas", diz Fernandes.
Já o MP de Goiás está focado em casos ocorridos nos últimos dez anos, segundo a promotora Otoni, que faz parte da força-tarefa. Esse período se baseia no tempo de prescrição das penas, ou seja, o prazo máximo necessário para julgar um acusado após a data do crime. Transcorrido esse prazo, não há nada mais que possa ser feito.
O tempo de prescrição varia de acordo com o crime e, no caso de João de Deus, cai pela metade, porque ele tem mais de 70 anos. Assim, a depender do tipo de crime sexual em que as denúncias contra João de Deus podem ser enquadradas, a prescrição no caso do médium varia de 6 até o máximo de 10 anos.
"O foco do Ministério Público é de 10 anos para cá. Mas o MP está sendo procurado por vítimas muito mais antigas. Elas também serão ouvidas", afirma a promotora Otoni.
Reprodução de trecho do recurso do Ministério Público de Goiás, de 2012, contra a absolvição de João de Deus em primeira instância, em um caso de abuso sexual de uma menor, ocorrido em 2008Direito de imagemREPRODUÇÃO
Image captionReprodução de trecho do recurso do Ministério Público de Goiás, de 2012, contra a absolvição de João de Deus em primeira instância, em um caso de abuso sexual de uma menor, ocorrido em 2008. Mesma promotora deve denunciar João de Deus pelos casos que vieram à tona este ano

Promotora já havia denunciado João de Deus dez anos atrás

Após a conclusão das investigações, a denúncia contra João de Deus deve ser oferecida por Cristiane Marques de Souza, promotora de Abadiânia há 11 anos.
Não será a primeira vez que a promotora terá denunciado o médium. Cristiane já atuou em um caso de abuso sexual que teria sido cometido por ele há dez anos. A vítima era uma jovem de 16 anos.
Na ocasião, João de Deus foi absolvido em primeira instância por falta de provas. O caso, então, foi para segunda instância.
No recurso, a promotora relatou o que havia ocorrido: "Com o fito de satisfazer sua lascívia, o denunciado acariciou os seios, barriga, nádegas e virilha da vítima. Não satisfeito, o denunciado segurou a mão da vítima, por cima da roupa, sobre seu órgão genital e começou a movimentá-la para cima e para baixo em movimentos constantes, enquanto afirmava que ela estava recebendo 'o espírito' e que iria ser curada".
"Em ato contínuo, o denunciado sentou-se em uma cadeira e ordenou a vítima que ajoelhasse na sua frente e mais uma vez, valendo-se da mão da menor, manipulou seu próprio órgão genital, sempre repetindo que se tratava de parte do 'tratamento'. Assustada e acuada pelas circunstâncias, notadamente a condição do denunciado, a vítima não conseguiu pedir ajuda, limitando-se a chorar compulsivamente".
A seguir, a promotora Cristiane concluiu: "Constata-se não existir nenhuma contradição que venha a afastar a autoria do fato atribuída a João Teixeira de Faria. Assim, dúvidas não há quanto à autoria do delito, que recai inconteste sobre o acusado, tampouco da materialidade, confirmada pela prova testemunha produzida em juízo".
O médium, porém, acabou sendo absolvido também em segunda instância.
Já agora, ao oferecer sua segunda denúncia contra o médium, a promotora Cristiane poderá se basear em um grande número de depoimentos. Mesmo acusações que já perderam prazos legais podem ser usadas como testemunhas, para corroborar os depoimentos das vítimas cujos casos podem ser julgados.
Além disso, dessa vez é possível que a denúncia contra João de Deus inclua outros tipos de crime - no caso de dez anos atrás, a acusação era violação sexual mediante fraude. Já agora, o MP "trabalha com a possibilidade de enquadramento dos casos em estupro, estupro de vulnerável e violência sexual mediante fraude", diz a promotora Patrícia Otoni, da força-tarefa de Goiás.
BBCBrasil
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